Relise

Documentário homenageia
Clementina de Jesus: Rainha Quelé


            Passados mais de sessenta anos de uma existência longe dos palcos, longe das mídias e talvez sem que ela nem sequer tivesse sonhado que isto seria possível, pelas mãos de Hermínio Bello de Carvalho,  veio à tona com sua voz rascante, gutural, quase um grito. Abalou as estruturas musicais. Era uma senhora, negra, pobre, dona de casa e empregada doméstica que passou a cantar com João Bosco, Pixinguinha, Paulinho da Viola. Das incelenças, pontos e jongos aos sambas dissonantes e sofisticados, tudo, na voz de Clementina de Jesus, ganhou outra cor: a cor da terra afro-brasileira e sua memória ancestral.
            Inexplicavelmente, quase não se fala mais em Clementina de Jesus. Fatores múltiplos convergem para este silêncio: desinteresse do público ou pura ignorância (no sentido daquilo que se ignora, porque não se conhece), inviabilidade comercial alegada pelas gravadoras, esclarecendo-se qualquer confusão que se faça entre o que é cultura e o que é mercado, porém como se só fosse possível se entender a cultura pela lógica do mercado, além de impasses com direitos autorais, em contraponto com um direito nacional – o de se entender o passado brasileiro. Deste modo, fica nublada, mais uma vez, pelo véu do esquecimento, uma dentre as passagens mais poéticas e significativas da musicalidade brasileira e uma das mais contundentes presenças da negritude na construção da nossa identidade, Clementina de Jesus.
            É deste resgate, desta reflexão, deste papel social e histórico que este trabalho pretende, se não dar conta, pelo menos rememorar e de alguma forma auxiliar a propagar uma voz, uma imagem que não deve, absolutamente, deixar de ser reverenciada, revivida. É um direito do cidadão brasileiro de conhecer a figura e a voz única de Clementina de Jesus. É João Bosco que avisa: “é impossível se viver uma vida no Brasil sem conhecer Clementina de Jesus”. É um dever cultural à memória musical, à condição social afro-brasileira, um dever antropológico, moral e poético.
            Por isso, após exaustivos, mas também gratificantes quase dez anos de pesquisas, nos quais, aos poucos, engajou-se uma equipe, cujo trabalho de juntar retalhos se deu sempre de forma voluntária e apaixonada, finaliza-se um documentário intitulado “Clementina de Jesus: Rainha Quelé”.
         Trata-se de um apanhado em mosaico, constituído, sobretudo, a partir dos relatos, das narrativas construídas com os depoimentos dos entrevistados, paralelas à pesquisa do material iconográfico da carreira da cantora negra. Ainda como peça fundamental para a concretização do vídeo-reportagem está a obra “Rainha Quelé”, organizada pelo pesquisador Heron Coelho e que traz textos de autores importantes, tais como Hermínio Bello de Carvalho, Nei Lopes, entre outros, que escreveram sobre Clementina de Jesus, relatando parte de sua obra e vida. Os textos foram fundamentais para nortear o roteiro.
O vídeo foi realizado sem nenhum tipo de apoio ou incentivo público. Recursos empregados para viagens, hospedagens, uso de equipamentos, foram dispendidos pelos realizadores. Todos os profissionais envolvidos engajaram-se voluntariamente ao trabalho, há que se destacar sempre. Curioso, mas explicável e lógico, que esta iniciativa tenha que ter partido de pessoas não ligadas a grandes grupos de mídia, já que a principal investidora no projeto é uma pequena produtora de Votorantim, no interior de São Paulo.
           O diretor é militante da idéia da “semeação da cultura e da memória”. Ou seja, o que se resgata aqui é a idéia da cultura como cultivo – propagar, plantar para não deixar morrer. Trata-se ainda, segundo os realizadores, de um trabalho de conscientização de que o Brasil tem uma dívida com a cultura negra.
           Dentre as tomadas de imagem realizadas, as mais poéticas encontram-se quando se enfatiza a vivacidade da música e da dança negra vivenciadas no Quilombo São José da Serra, no estado do Rio de Janeiro. Clementina de Jesus nasceu em Valença, no mesmo estado. Seus pais eram remanescentes de origem banto, provável origem dos negros de São José. Por isso, a narrativa entrecruza a imagem de muitos negros, entre eles, Clementina de Jesus.
Entre os entrevistados, estão Paulinho da Viola, João Bosco, Cristina Buarque, Martinho da Vila, Leci Brandão, Paula Lima, Monica Salmaso, Carlinhos Vergueiro. Todos fizeram questão de deixar seus testemunhos, não só pelo reconhecimento da relevância de Clementina de Jesus para a música e a cultura brasileira, bem como pelo amor e carinho para com Clementina. Tanto ela, Clementina, quanto o Quilombo São José, são patrimônios imateriais da cultura brasileira, e necessitam deste reconhecimento oficial - esta é uma das aspirações dos realizadores: que se possa alertar para esta necessidade. Neste sentido, a exibição da obra é destinada apenas a espaços públicos e alternativos e a distribuição será totalmente gratuita. Trata-se da consciência de que não se confunde cultura e mercado, bem como do desafio de se explicitar a necessidade de apoio e espaços para aquilo que o mercado não contempla, mas que é parte fundamental da memória e da cultura brasileiras.
            Além da carreira, destacam-se aspectos do dia a dia de Clementina de Jesus, com cenas inéditas da cantora em sua casa, imagens estas que são fruto da colaboração daqueles que nela acreditam como um patrimônio imaterial.
            A primeira exibição aconteceu em 14 de maio de 2011, no Quilombo São José da Serra, em uma festa na qual se comemora a abolição da escravatura. Neste caso, valeu-se como um tributo à negritude e, por justiça, a comunidade negra da qual Clementina é ascendente, foi a primeira a receber o resultado do vídeo-reportagem. Percorreu, desde então, importantes mostras e festivais, tendo inclusive conquistado prêmios.
            O grupo Cupinzeiro, de Campinas, SP, também engajado na causa, ofereceu uma música com o tema da negritude para compor o trabalho. Não fosse o engajamento e a crença na necessidade de superar a lógica de mercado, portanto, e sem recursos públicos, esta obra não seria possível. “É uma obra composta coletivamente. Pela necessidade de se resgatar a musicalidade de Clementina de Jesus e pelo dever de exaltação à memória negra no Brasil”, afirmam os realizadores.
            Sobre o diretor, Werinton Kermes, é documentarista, tendo realizado, entre outros, “João do Vale: muita gente desconhece”.  É diretor do projeto de comunicação alternativa Provocare, produtor cultural e fotógrafo. A roteirista, Míriam Cris Carlos, é doutora em Comunicação e Semiótica e pesquisadora do Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba.
            Ressalta-se que o trabalho não possui finalidade comercial. A obra está à disposição de entidades, fundações, escolas, espaços públicos e alternativos, pesquisadores, sem nenhum custo, enfim, todos aqueles que se responsabilizem pela propagação da memória de Quelé (forma como Clementina era chamada na infância). A todos aqueles que também acreditam que é possível semear a cultura.



Texto: Míriam Cris Carlos




-----------------------------------------------
Assessoria de imprensa: Luciana Lopez
Mais informações pelo e-mail: rainhaquele@gmail.com





.